Lélia Gonzalez: da luta contra o racismo estrutural ao racismo digital atual
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No dia 08 de março, comemoramos o Dia Internacional das Mulheres, data que marca o símbolo das conquistas das mulheres no século XX. E, no último dia 1º de fevereiro, seria o 88º aniversário de Lélia Gonzalez, por isso, resolvi escrever este post contando um pouco sobre a história dessa grande mulher negra brasileira e sua importância na luta contra o racismo e o sexismo.
E quem foi Lélia?
Mesmo quem estuda e participa de ações de diversidade e inclusão pode ainda não conhecê-la ou estar começando a estudar essa mulher tão importante da história recente brasileira.
O interesse e a procura pelos trabalhos de Lélia aumentaram quando Angela Davis, estadunidense e uma das mais importantes feministas negras e intelectuais de nossa atualidade, teve a oportunidade de visitar o Brasil em 2019 e discursar sobre o assunto, no qual ela disse: “Eu me sinto estranha quando sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. E por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Eu acho que aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderiam aprender comigo.”
Nascida em 1935, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Lélia Gonzalez se formou em História e Filosofia pela então UEG (Universidade do Estado da Guanabara), atualmente UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), e foi professora de Cultura Brasileira na PUC-Rio, tornando-se, posteriormente, chefe do departamento de Sociologia e Política da mesma universidade no mesmo ano de seu falecimento, 1994.
Lélia também foi a 17ª filha de um pai ferroviário e uma mãe de origem indígena, que mudou de Minas Gerais para o Rio de Janeiro junto com sua família quando seu irmão, Jaime, recebeu uma proposta para jogar futebol em um time do estado. Teve a oportunidade de estudar pelo custeio dos empregadores das casas em que sua mãe trabalhava como empregada doméstica.
Cunhadora de termos e conceitos como “amefricanidade”, Lélia foi precursora do conceito de “interseccionalidade”. Em uma época em que se lutavam pelas questões raciais majoritariamente para homens negros e pelas questões de igualdade de gênero majoritariamente para mulheres brancas, foi ela quem começou a trazer esses dois debates para os mesmos fóruns, evidenciando a importância de entender que mulheres negras sofriam mais por não serem consideradas em sua completude por nenhum dos dois movimentos de luta por igualdade.
Entre muitos de seus envolvimentos em movimentos sociais, ela ajudou na fundação do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), do Coletivo de Mulheres Negras N’Zinga, na escola de tambores afro-brasileira Olodum, além de ter sido cofundadora do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), que, posteriormente, tornou-se o Movimento Negro Unificado (MNU).
MNU (Movimento Negro Unificado)
Lélia Gonzalez, em conjunto com outros líderes e pensadores brasileiros entre as décadas de 1970 e 1990, também ajudou a resgatar a importância dos negros e indígenas na história brasileira, sendo ela uma das líderes da Marcha Contra a Farsa da Abolição, pelo Movimento Negro Unificado (MNU), realizada em 11 de Maio de 1988, 2 dias antes da celebração dos 100 anos de promulgação da Lei Áurea, que pôs (ou deveria ter posto) fim à escravidão no Brasil.
A Marcha foi um grito contra o racismo, uma defesa das tradições e culturas afro-brasileiras e uma luta pelo direito à memória da população negra, na qual foram eleitos o Zumbi dos Palmares e a data de sua morte, 20 de novembro, como símbolos históricos da luta do povo negro no Brasil. Lélia defendia que Palmares, organizado no século XVII por negros, indígenas e até brancos que fugiam de condições de escravos ou de extrema precaridade e conviviam em comunidade, teria sido, segundo ela, o primeiro estado livre das Américas.
Representatividade
Conhecida por cunhar o termo e utilizar o “Pretuguês”, dialeto brasileiro, segundo Lélia, resultado da mistura das culturas africanas e da língua portuguesa, em seus discursos e materiais acadêmicos como forma de reforçar a importância de exaltar as culturas afro-latino-americanas e tornar acessível seus pensamentos ao povo negro brasileiro, Lélia escreveu o discurso a seguir, no qual ela ressalta a importância do “lugar de fala”, termo bastante debatido e trabalhado por outra importante filósofa de nossa atualidade, Djamila Ribeiro, que faz referência à importância da representatividade na construção da igualdade racial e de gênero.
“Cumé que a gente fica?”
“Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente pra uma festa deles, dizendo que era pra gente também. Negócio de livro sobre a gente. A gente foi muito bem recebido e tratado com toda consideração. Chamaram até pra sentar na mesa onde eles estavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado, explorado.
Eram todos gente fina, educada, viajada por esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi se sentar lá na mesa. Só que tava cheia de gente que não deu pra gente sentar junto com eles. Mas a gente se arrumou muito bem, procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles.
Eles tavam tão ocupados, ensinando um monte de coisa pro crioléu da plateia, que nem repararam que se apertasse um pouco até que dava pra abrir um espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa. Mas a festa foi eles que fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega pra cá, chega pra lá. A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso.
Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente deu uma de atrevida. Tinham chamado ela pra responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa pra falar no microfone e começou a reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava armada a quizumba.
A negrada parecia que tava esperando por isso pra bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que nem dava mais pra ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de raiva e com razão. Tinham chamado a gente pra festa de um livro que falava da gente, e a gente se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles.
Onde já se viu? Se eles sabiam da gente mais do que a gente mesmo? Teve uma hora que não deu pra aguentar aquela zoada toda da negrada ignorante e mal-educada. Era demais. Foi aí que um branco enfezado partiu pra cima de um crioulo que tinha pegado no microfone pra falar contra os brancos. E a festa acabou em briga…
Agora, aqui pra nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se não tivesse dado com a língua nos dentes… Agora tá queimada entre os brancos. Malham ela até hoje. Também quem mandou não saber se comportar? Não é à toa que eles vivem dizendo que ‘preto quando não caga na entrada caga na saída’…”
Racismo digital
Enquanto idealizava este conteúdo, tive a oportunidade de ler a matéria “Racismo digital: como o preconceito nos algoritmos reproduz comportamentos humanos”, publicada no periódico Mundo Negro no dia 24 de fevereiro deste ano, no qual Rodrigo Faustino evidencia dados relevantes sobre como algoritmos de sistemas podem favorecer ou apontar para problemas gerados pelo racismo estrutural.
Segundo Faustino, “… As novas tecnologias e a alta demanda do mercado por novos produtos intensificou a utilização de recursos que adotam medidas que favorecem a branquitude”, usando como exemplo o “… impacto quando utilizamos alguma plataforma de busca na internet, ao pesquisar a palavra família, os primeiros resultados da busca, ou seja, os mais clicados, são sempre de pessoas brancas, evidenciando como existe uma lógica de não associação de pessoas negras ao conceito de família”.
O autor da matéria apresenta dados para ressaltar esse favorecimento como: “De acordo com o levantamento realizado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, juntamente com o Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais, foram realizadas 90 prisões injustas entre os anos de 2012 a 2020 por meio de reconhecimento facial. O levantamento ainda afirmou que 81% dos registros que contavam com informações sobre a raça dos acusados, se tratavam de pessoas negras.”
E ele conclui com a seguinte frase: “Pode parecer difícil perceber como o racismo algorítmico atua, mas, de maneira implícita e sutil, ele reforça uma visão de mundo que influencia diretamente a sociedade. Os comandos automáticos das máquinas e as linhas de programação são construídos por mãos humanas, portanto, importando para dentro do mundo tecnológico a visão de cada ser humano perante à sociedade.”
É impossível não traçar um paralelo entre essa análise de Faustino e a visão da importância da representatividade, compartilhando o lugar à mesa para negros, principalmente mulheres negras, trazida à luz por Lélia Gonzalez, a fim de vencermos o racismo. Ela não teve a oportunidade de viver e conhecer o mundo digital que experienciamos e construímos hoje. Porém, é inegável que, mesmo não existindo esse mundo digital ainda em seu tempo, Lélia já sabia que não seria possível criar uma sociedade justa e igualitária, até mesmo digital, sem a visão de mundo de cada participante em sua construção.
Pangeia
Recebi a oportunidade de escrever este texto representando nosso Grupo de Afinidade Étnico-Racial do Mercado Bitcoin, o Pangeia, criado em 2022. Escolhemos esse nome para o grupo por representar o tempo em que a terra era um único continente, todo unido, sem fronteiras territoriais.
Vemos a oportunidade de discutir os temas étnicos-raciais dentro de nossa empresa, assim como as possibilidades de ações de inclusão e diversidade, sempre com a visão de unificar e derrubar barreiras, porém, respeitando a pluralidade, diferenças culturais e, principalmente, com o intuito evidenciar assuntos que, muitas vezes, passam despercebidos em nosso dia a dia, muito por conta de vieses inconscientes.
Sabemos que temos muito a melhorar – e essa consciência é o que nos motiva na construção de pessoas mais inclusivas e comunidades mais diversas, com oportunidades mais iguais.